quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Memorial de Leitura

ESTADO DA BAHIA

PREFEITURA MUNICIPAL DE JEQUIÉ

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA GESTÃO DE APRENDIZAGEM ESCOLAR

PDE – GESTAR II

MEMÓRIA DE LEITURA



Jequié (BA) – agosto

2009



Memória de Leitura

Marivone de Oliveira Silva Pimentel, 46 anos*

Uma história não é mais que um grão de trigo. É ao ouvinte, ao leitor que compete fazê-lo germinar. Se não germina, é questão de falta de ar, de sol, de liberdade, de solidão.

(Michel Déon)

Nasci numa fazenda chamada Boa Esperança, no início da década de 60, interior do município de Santa Terezinha, recôncavo baiano. Caçula até os 13 anos (ganhei um irmãozinho após essa idade) tive uma infância feliz e recheada do encantamento dos contos infantis.

Minha mãe, única “leitora” e “escritora” “reinava” por essa razão, em uma comunidade de analfabetos e semi-analfabetos. Foi através dela que fiz o meu primeiro contato com o maravilhoso mundo da fantasia. Histórias fantásticas de reis, rainhas, príncipes e princesas não faltavam. Bruxas e animais falantes, castelos e bailes, também faziam parte desse encantamento. Em minha comunidade, as pessoas mais velhas adoravam contar histórias e tinham sempre uma platéia atenta e numerosa, pois crianças, adolescentes, jovens e adultos, todos adoravam um bom conto. Em noites quentes de lua cheia, a varanda da casa era o lugar preferido para se ouvir os contos que ora nos arrepiavam, esbugalhando nossos olhos, ora emocionavam, arrancando-nos lágrimas.

As histórias nunca eram lidas, eram contadas. Naquela época, nem sabíamos que essas mesmas histórias estavam registradas em livros. Elas eram contadas com tanto entusiasmo que, muitas vezes, chegávamos a pensar que o contador tinha presenciado aquelas cenas.

É costume numa comunidade pequena, as pessoas trabalharem em coletividade. O adjuntório (mutirão) era uma atividade comum na região, quer seja para construir uma casa de pau-a-pique, para raspar o pó-de-palha, para quebrar licuri (espécie de coquinho) quer seja para assar castanhas de caju, todos se reuniam para render o trabalho. O melhor é que, enquanto os adultos trabalhavam, as crianças se deliciavam com os “causos” que eram contados. No meio do serviço, havia uma parada obrigatória para a merenda, oferecida pelos donos da casa. Esses momentos eram esperados por todos, pois uma diversidade de cuscuzes, bolos e biscoitos eram sempre saboreados e acompanhados por um delicioso café. O adjuntório que mais me agradava era o da casa-de-fazer-farinha, porque sempre havia um grupo de pessoas em volta da pirâmide de mandiocas, descascando-as. Era uma festa, pois enquanto as mãos trabalhavam, o povo se revezava para contar lindas histórias.

Quando chegou no tempo de ir à escola, grande foi a minha expectativa, pois teria oportunidade de conhecer muitas e muitas outras histórias. No entanto, houve uma frustração, percebi que a escola só tinha um objetivo: ensinar as letras, as sílabas e as palavras que eram lidas em textos que não traziam nenhum significado – era a Cartilha da Lili.

O tempo foi passado e o meu segundo contato com livros foi ainda na escola, na 1ª série do antigo primário. Tínhamos um livro didático, conhecido, na época, como Livro de Olga Pereira. Nele havia várias histórias, embora ainda não satisfizessem minha vontade de conhecer o mundo, pois os textos eram fragmentados.

Já em casa, o meu primeiro contato com os livros se resumia em dois livros de minha mãe, o primeiro o livro de receitas (artes culinárias), o outro era um livro que antigamente era muito utilizado pelas pessoas que buscavam o “bem escrever”, era um livro que ensinava a fazer cartas.

Ainda na infância, através do meu avô materno tive contato com a literatura de cordel. Eram folhetos que contavam histórias horripilantes de personagens folclóricas como a mula-sem-cabeça, a mulher de sete metros, saci pererê, lobisomem entre tantas outras histórias e lendas populares. Meu avô materno era repentista e tocador de viola, em seus oitenta e sete anos de idade, quando partiu. Naquela época, ele transcrevia em trovas e versos diversas histórias, como as da Bíblia, da origem e fundação de cidades vizinhas, a genealogia de famílias ilustres e também escreveu um “livrinho” na época, muito conhecido, intitulado o ABC dos Namorados.

Minha mãe era escrevinhadora (palavra do livro de Vargas Llosa) ou escrevedora (como a Dora no filme Central do Brasil) de cartas. Todavia existia uma diferença com a personagem do filme, minha mãe não cobrava nada para escrever as cartas e eram as próprias pessoas que postavam suas correspondências no correio da cidade, quando iam fazer compras, já que morávamos na zona rural. Minha mãe também tinha outras atribuições relacionadas à leitura, pois sendo a única, na região, que sabia ler e escrever, era convocada a ler todas as cartas que chegavam para os habitantes de nossa comunidade, como também a ler todos e quaisquer manuscritos dados por eles, como registros de casamento, de nascimento, de óbito, bulas, receitas de remédios caseiros, escrituras de terras, almanaques que indicavam o nome que poderia ser dado as crianças nascidas em uma determinada época, enfim para qualquer papel escrito, a minha mãe era a mulher ledora, conselheira, que desvendava todos os mistérios daquele lugar.

Eu nasci e vivi até muito tempo nesse pequeno mundo de informações trazidas pela necessidade de outros, além disso, só havia o rádio. Tornei-me, então, ouvinte das leituras desses documentos e cartas que eram também respondidas por minha mãe. Todos lidos em voz alta para que o destinatário tomasse conhecimento do conteúdo.

Mais tarde, outras experiências foram se associando à minha lembrança, a audição de novelas transmitidas diariamente pelo rádio. Em casa, na fazenda, minhas irmãs mais velhas costumavam ouvir essas histórias e eu, apesar da pouca idade, ouvia-as também.

Aos onze anos, mudei com minha família para a cidade, deixando para trás as mais lindas recordações da “minha infância querida, dos anos que não voltam mais”, como bem escreveu Casimiro de Abreu. Nova casa, novos amigos, morar na cidade, estar em uma escola em que cada aluno estudava numa sala de acordo com a sua própria série, pois antes minha experiência era em uma classe multisseriada. Mas, mesmo assim, apesar do novo, a metodologia não era diferente da antiga escola. As leituras eram feitas no livro didático a partir de textos fragmentados com o mesmo objetivo de saber se os alunos liam e interpretavam, de acordo com o manual, o que o autor queria dizer. Nada mais.

Na escola não existia biblioteca, como também não tinha no povoado de onde eu vinha. Mas, havia na cidade uma banca de revistas! Foi aí que eu passei a me encantar pelo texto escrito. Primeiro com os gibis, em seguida com as revistas de fotonovelas e, posteriormente, com os romances Bianca, Sabrina e Júlia. Gastava todas as minhas economias com essa literatura e por ela era fascinada cada vez mais.

Somente quando cursava a oitava série do antigo ginasial é que tive o prazer de ter uma professora de Língua Portuguesa que incentivava a leitura e fazia boas indicações de livros para seus alunos lerem. O primeiro e inesquecível livro da literatura brasileira que ela recomendou foi Meu pé de laranja lima de José Mauro de Vasconcelos. Essa história marcou minha vida, pois assim como a personagem Zezé, eu também conversava com as árvores, desde as que havia deixado na fazenda até aquelas do quintal da casa onde residia naquele período. Identifiquei-me totalmente com o garoto do livro. Lembro-me que após a leitura desse texto, incentivados e orientados pela professora, fizemos um júri simulado. Foi fantástico!

Percebendo o meu interesse por leitura, essa professora passou a emprestar-me seus próprios livros, tais como Poliana, menina e moça (livro que toda mocinha de classe média da época lia); O primo Basílio (Eça de Queiroz); Ana Terra (Érico Veríssimo) entre outros, e assim meu gosto pela leitura foi despertado, estimulado e diversificado. Nada era exigido para nota, apenas conversávamos sobre o texto lido.

Terminado o antigo curso ginasial, cursei o Magistério. Minha experiência com leitura, nessa época foi fantástica, pois incentivada pela professora de Literatura, li livros como Olhai os lírios do campo de Érico Veríssimo, Memórias póstumas de Brás Cubas; Dom Casmurro; Quincas Borba esses últimos todos de Machado de Assis, entre tantos outros clássicos nacionais e estrangeiros.

Depois do Magistério, casei, tive dois filhos e junto com eles li toda a coleção de contos infantis, desde os mais conhecidos até os menos divulgados. A leitura fazia parte da minha vida, já não podia viver mais sem ela. Na escola onde fui exercer o magistério, li com meus alunos todos os livros maravilhosos que a Fundação de Amparo ao estudante (FAE) mandava para a escola, além de ler outros textos necessários para o meu crescimento profissional.

Em 1991, o Programa de Incentivo à Leitura (PROLER) surge em minha vida para mostrar mais uma vez a necessidade de ler, de contar e recontar histórias na sala de aula, em casa, na comunidade e tantos outros lugares.

Após participar de diversas oficinas de leitura e minicursos nos vários encontros do PROLER, na UESB, surgiu em mim a necessidade de fazer um curso superior e, em 1995, prestei o vestibular pela primeira vez, passei e ingressei na Faculdade de Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Jequié. Foi um momento muito importante em minha vida.

No universo das letras, novas leituras foram feitas. Àquelas, teóricas, que eram imprescindíveis para o aperfeiçoamento no curso e todas aquelas leituras descompromissadas e totalmente prazerosas, que mesmo com o tempo escasso era possível fazê-las.

De repente, a minha relação com os textos teóricos mudou. Antes os lia por obrigação do curso a que me propunha fazer, depois por uma necessidade de saber mais, de aprender mais, de compreender mais para poder ensinar cada vez melhor aos meus alunos.

Hoje, busco também despertar em meus alunos o prazer da boa leitura, quer comentando os livros que já li, quer narrando histórias. Tenho por hábito contar apenas um trechinho da história de alguns livros para aguçar a curiosidade de meus alunos-leitores e ouvir deles suas outras histórias. Ainda assim, devido o trabalho, os estudos e tantas outras coisas, acho que não leio tanto quanto gostaria, pois o tempo sempre é reduzido. Mesmo assim, procuro não perder as oportunidades de tempo que surgem, seja no banheiro, no sofá, no ônibus, no intervalo das aulas, nos horários de atividade complementar.

Minha biblioteca é ainda muito pequena para aquela tão sonhada, mas estou sempre, que possível, adquirindo livros ou mesmo pegando emprestado nas bibliotecas públicas da cidade. Em minha casa, meus livros têm lugar de honra, ficam expostos em estantes na sala de trabalho, a vista de todos da casa e percebo que, com essa disposição, tanto meus filhos, os amigos de meus filhos, quanto o meu próprio marido estão sempre buscando alguma coisa para ler. Assino também algumas revistas, tais como Isto é; Superinteressante; Jornal Mundo Jovem, Nova Escola, Caros Amigos e Língua Portuguesa as quais costumo deixá-las em locais estratégicos da casa, para que os outros possam lê-las também.

Por toda a minha vida a leitura deixou a sua marca, ela é de fundamental importância para o crescimento das pessoas. Como professora de Língua Portuguesa, procuro investir nos estudantes a pratica da língua materna. Levo, em minhas salas de aula, novos textos para serem lidos, falo de minha experiência de leitora com outros textos que já li ou, ainda, que estou lendo. Tudo isto para incentivar meus alunos. O que, muitas vezes, é algo desafiador, pois o ritmo acelerado das mudanças que têm se apresentado nos últimos tempos, a superação dos limites técnicos e científicos, os avanços de comunicação entre os povos através de computadores e satélites que ligam a humanidade globalmente, entre outros, tem afastado as pessoas das histórias, das conversas, dos adjuntórios de minha época. Hoje, infelizmente, apesar de tanta tecnologia, as pessoas leem cada vez menos.

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